Você conhece quase todas as letras do alfabeto; sabe contar pelo
menos até quatro; está já aprendendo a forma dos números; tem um
vocabulário e clareza muito superiores a sua idade. É, do ponto de vista
intelectual, a criança de dois anos mais notável que eu conheci.
Entrementes, estamos cada vez mais desconectados. Você raramente
aceita minha presença e, de outras vezes, sou eu que não sei mais me
aproximar. Como sua mãe, tenho me sentido incompetente e assustada, como
se eu vivesse correndo atrás de você e sempre estivesse atrasada. Não
sei como atingi-lo, onde encontrá-lo, e estou começando a ter medo até
de te procurar.
Ouço as gravações de quando nossa vida era bem mais simples, de
quando nós éramos cúmplices, e não consigo evitar as lágrimas. Tento
encontrar uma explicação, uma resposta, um caminho, e parece que jamais
consigo atinar com a verdade dos fatos.
Há meses não te ponho para dormir, porque você não permite. Há meses
você parece essencialmente uma criança infeliz e perturbada... Fico
tentando entender aonde foi que falhamos. Demos a você um lar tranqüilo
e estável, sereno e seguro. Você não recebe estímulos à violência,
tampouco vê televisão em excesso. Está cercado de pessoas carinhosas e
amáveis, que te admiram e tudo fazem para te satisfazer, sem,
entretanto, cumular-te de mimos e caprichos. Você tem brinquedos, trata
com homeopatia, tem roupinhas e amiguinhos. Sai de casa cinco dias por
semana e tem a oportunidade de socializar com outras crianças nessas
ocasiões. Seus primos não te agridem, mesmo quando você lhes bate. E,
entretanto, você parece cada vez mais infeliz, perturbado e
atormentado. Tento me aproximar de você, entender o que está
acontecendo, mas, de cada vez, parece existir um muro maior entre nós
dois.
Aonde estamos, Estêvão? Quem somos? Para onde isso vai nos levar?
Sua irmã nasceu há onze dias. Só ela me faz entrever em você o
menininho que foi há pouco tempo. Com ela você é terno e gentil, mas
mesmo ali existe algo da ansiedade apreçada que te caracteriza agora.
Não sei para onde ir, como te encontrar. Então escrevo para
organizar minha tristeza e para dizer inutilmente que te amo; para rogar
aos céus inspiração e coragem e para sentir, ainda que de forma tão
incompleta, alguma cumplicidade contigo.
Pensem na morte. Nem sempre. Nem todos os dias. Não flertem com ela, que
isso ´mórbido. Mas considerem-na. Morrer faz parte da vida. Não é o
desejado, mas é ...
Há 13 anos